Exercício em separado da autoridade paternal: breve análise à luz do ordenamento jurídico angolano

por Ireneu Matamba em 01 de Sep, 2024 Artigo
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Exercício em separado da autoridade paternal: breve análise à luz do ordenamento jurídico angolano
  1. Introdução

Em 2012 uma senhora solicitou um parecer jurídico sobre os poderes-deveres que assistem aos progenitores em caso de exercício em separado da autoridade paternal. Mais concretamente foi solicitado um pronunciamento sobre a juridicidade do progenitor a quem seja atribuída a guarda de uma criança viajar com a mesma, sem a necessidade de autorização do outro progenitor, sendo os progenitores estrangeiros, um residente e o outro não residente.

O que se pretendia saber era se o Código da Família, aprovado pela Lei nº 1/88, de 20 de Fevereiro, quer pela sua letra, quer pelo seu espírito, permite que qualquer dos progenitores viaje com a criança sem carecer de autorização do outro, em caso de exercício disjuntivo da autoridade paternal.

Tal questão continua a ser colocada actualmente e assume particular relevância no caso de angolano, considerando existirem várias relações de família internacionais, isto é, que tocam a diversas ordens jurídicas, considerando a nacionalidade (e as vezes a residência) dos progenitores.

Assim, abaixo, partilho o essencial do parecer emitido na altura, que teve como base o Código da Família, em especial os seus artigos 4.º, 127.º a 138.º, 148.º, 149.º a 151.º e 238.º, bem como a Convenção sobre os Direitos da Criança, mormente os artigos 9.º e 10.º.

 

  1. Autoridade paternal e o superior interesse da criança

A autoridade paternal é um conjunto de poderes-deveres atribuídos por lei aos pais, que devem ser exercidos no interesse dos filhos e da sociedade. Por isso mesmo são chamados de poderes deveres ou poderes funcionais.

Aspecto fulcral, norteador e determinante para esse exercício é, como em qualquer outra situação referente a uma criança, o superior interesse da criança e não qualquer vontade dos pais, individual ou conjuntamente considerada. Pode-se mesmo dizer que o superior interesse da criança é o alfa e o ómega, isto é, o princípio e o fim de todo e qualquer procedimento, de toda e qualquer decisão relativos a crianças.

No sentido sobredito, a convenção dos direitos da criança, no seu artigo 3.º, n.º 1, consagra o seguinte:

“Todas as decisões relativas a crianças, adoptadas por instituições públicas ou privadas de protecção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança”.

A doutrina costuma distinguir o conteúdo pessoal e patrimonial da autoridade paternal.

O primeiro, é essencialmente integrado pelos poderes-deveres que visam garantir em primeiro lugar a sobrevivência da criança, bem como o seu bem-estar físico e moral.

Já o conteúdo de natureza patrimonial diz essencialmente respeito ao modus de administrar os bens dos filhos que sejam crianças, quer por via ordinária, visando manter ou frutificar os referidos bens, quer de forma extraordinária, quando a prática de qualquer acto por parte dos pais implicar a alteração ou mesmo o desaparecimento do bem da criança.

A propósito do referido no parágrafo antecedente, o artigo 135.º do Código da Família consagra o seguinte:

“incumbe aos pais a guarda, a vigilância e o sustento dos filhos menores e a prestação de cuidados com a sua saúde e educação”.

 

  1. Modalidades do exercício da autoridade paternal: em particular, o exercício em separado

Antes da referência concreta a alguns dos supracitados poderes funcionais, tenha-se em consideração que a autoridade paternal pode ser exercida em conjunto, em separado (quer no regime disjuntivo, quer no regime de guarda conjunta ou alternada, de acordo com a terminologia usada pela Ilustríssima Professora Maria do Carmo Medina, Direito da Família, Escolar Editora, 1ª edição, páginas 157-162.) ou mesmo de forma única ou exclusiva.

A presente análise incide unicamente sobre o exercício em separado, ou seja, aquele que ocorre quando não haja coabitação dos progenitores.

Não há coabitação quando os pais sejam casados e estejam separados de facto, se tenham divorciado, quando os pais não casados e que hajam coabitado tenham posto fim a sua união de facto ou ainda quando os pais nunca tenham tido qualquer coabitação (nunca foram casados e nunca viveram em união de facto).

A propósito, o artigo 148.º do Código da Família estipula o seguinte:

1.“no caso de não coabitação dos pais, designadamente por separação de facto, anulação do casamento ou divórcio, poderão o pai e a mãe estabelecer por acordo o exercício da autoridade paternal.

2. O acordo carece de homologação, nos termos do artigo 109.º, nº 1.

3. Na falta de acordo, decidirá o tribunal a qual dos progenitores deve ser atribuído o exercício da autoridade paternal.”

Por sua vez, o artigo 149.º do Código da Família dispõe o seguinte:

“Ao progenitor a quem for atribuído o exercício da autoridade paternal cabe em especial exercer os direitos e os deveres para com o filho, sem embargo do que for decidido sobre a prestação de alimentos por parte do outro”.

E o artigo 150.º Código da Família dispõe:

“O progenitor a quem não for atribuído o exercício da autoridade paternal, mantém o direito as relações pessoais com o filho, devendo cooperar na sua formação e educação e acompanhar o exercício da autoridade paternal por parte do outro”.

Nos termos dos três últimos artigos citados, em caso de exercício em separado, os poderes-deveres que integram a autoridade paternal (constantes do já citado artigo 135.º do Código da Família) são exercidos pelo progenitor a quem for atribuída a guarda (artigo 149.º, 1ª parte do Código da Família), sem prejuízo, claro está, do direito do outro progenitor ter relações pessoais com a criança (artigo 150.º do Código da Família) e do dever do outro progenitor prestar alimentos à criança, se e nos termos fixados pelo tribunal (artigo 150.º e 149.º, parte final).

A lei não fala de qualquer restrição ao exercício da autoridade paternal por parte do progenitor a quem a guarda seja atribuída, o que faz todo o sentido, pois, antes de ser atribuída a guarda a um ou a outro progenitor, o tribunal tem de analisar tendo em conta o superior interesse da criança e a decisão é igualmente tomada em consideração ao superior interesse da criança.

No mesmo sentido que o referido no parágrafo anterior, o Professor José João Gonçalves de Proença, na sua obra “Direito da Família, 4ª edição, página 297 diz que “quando a filiação se encontre estabelecida relativamente a ambos os pais e estes não tenham contraído matrimónio, após o nascimento do menor, o exercício do poder paternal pertence ao progenitor que tiver a guarda do filho (…)”.

Esta modalidade de exercício em separado da autoridade paternal é a consagrada pelo Código da Família (vide artigo 149.º) e é actualmente chamada pela doutrina de regime disjuntivo.

 

  1. Poderes do progenitor que tenha a guarda da criança, em especial, o de viajar com a criança

Dentro dos vários poderes que o progenitor a quem seja atribuída a guarda da criança encontra-se, necessariamente, o de viajar para o interior ou exterior do país, sem dependência de autorização especial por parte do outro progenitor, isto quer os motivos da viajem estejam relacionados directamente com a criança (saúde, formação académica, dentre outros), quer indirectamente (tratamento do progenitor, trabalho do progenitor, do qual, obvio está, advirá os rendimentos para o sustento da criança, em fim).

Entende-se, no entanto, que o desejável será que haja comunicação entre os progenitores, para o bem do filho, pois ocorrendo uma viagem, o direito de visita por parte do progenitor a quem a guarda não foi atribuída sofre limitação, não obstante justificada. Mas tal comunicação atempada, se possível, é de todo diferente de uma eventual autorização, nos termos algumas vezes referidos por algumas pessoas.

A autorização faz todo sentido quando os pais coabitem ou quando haja qualquer indício de que possa ocorrer um rapto da criança ou mesmo “destiná-la” a práticas de actos “impróprios”, quer em termos morais, quer em termos físicos ou outros que periguem a integridade física e moral, bem como o necessário desenvolvimento da criança. Mas essas considerações são levadas a cabo pelo tribunal no começo, no decurso e mesmo ao decidir sobre com qual dos dois deve a criança estar.

Como poderá o tribunal saber se existe ou não tal risco (de rapto ou outro)?

Entende-se que a única via possível é através dos comportamentos anteriores dos progenitores relativamente ao filho, em especial, mas e se possível, relativamente a quaisquer outras crianças.

Se, por exemplo, o progenitor a quem se pretenda atribuir ou se atribua a guarda noutras viajou com a criança, em outras ocasiões, tendo sempre feito a comunicação ao outro e nunca impediu o exercício do direito de visita por parte do outro progenitor, não há motivos para preocupações desta ordem.

Ademais, sendo esse tipo de processo de jurisdição voluntária, de acordo com o que se dispõe no artigo 6.º, nº 1, da Lei que aprovou o Código da Família, a decisão poderá ser revista a todo o tempo, sempre que as circunstâncias se alterarem e o superior interesse da criança o justificarem.

Mas, ainda assim, pode-se questionar o seguinte: quid iuris, se os pais forem cidadãos estrangeiros e um residente e o outro não residente?

Entende-se que num caso do género, apesar dos necessários cuidados, a solução seria a mesma, nos termos da lei em vigor. O melhor seria que houvesse acordos bilaterais ou multilaterais entre os Estados envolvidos, isto é, entre o país da Lex Fori e o(s) pais(es) da lei pessoal de cada um dos intervenientes, pelo menos.

Sabe-se que pelo menos entre Angola e Portugal, vigora o acordo de cooperação jurídica e judiciária, que permite, dentre outros, o reconhecimento e a execução de sentenças de um Estado no território do outro, o que reforçaria mais as garantias processuais para qualquer um dos progenitores, havendo uma eventual alteração grave da situação (o referido acordo pode ser consultado em https://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/instrumentos/acordo_cooperacao_juridica_e_judiciaria_entre_republica_portuguesa_e_republica_angola.pdf).

Nestes termos, qualquer um dos interessados pode, sendo por exemplo cidadão português, intentar em Angola ou em Portugal, as necessárias e competentes acções para acautelarem ou reporem os seus direitos violados.

E ainda, se a lei consagrasse a necessidade de autorização para actos do género (viajem para o interior ou exterior do país), em muitas situações poderia afigurar-se impraticável, devido a ausência de um ou outro do país, sem, por exemplo, ter comunicado ao outro (aliás, pese embora a quaestio relativamente ao filho, cada um dos progenitores mantém a sua liberdade e direitos, entre os quais o de se locomover).

Num caso esse, sendo urgente a saída da criança ou do progenitor que tem a sua guarda, haveria um impasse enorme e que poderia trazer consigo consequências indesejáveis, se não mesmo nefastas.

Um outro argumento, a fortiori, é respeitante ao tratamento que a lei dispensa ao tutor.

A Professora Maria do Carmo Medina, na sua obra já citada, página 396º diz que “as funções do tutor têm como objectivo o exercício da autoridade paternal (…), o que engloba a representação pessoal do tutelado por parte do tutor e a administração dos seus bens”.

Em princípio e salvo melhor opinião, uma vez instituída a tutela o tutor exerce os direitos que caberiam ao pai e a mãe, salvas as limitações que a lei consagra (artigo 238.º do Código da Família). E dentre as referidas limitações não se encontra qualquer referente à viagem com a (criança) tutelada.

Esta solução da lei é compreensível na medida em que o tutor é, em princípio, uma pessoa de bem e que agirá de acordo com o superior interesse da criança, facto esse a priori analisado e comprovado durante o processo de tutela.

Assim, se se permite ao tutor viajar com o tutelado (crinaça), também ao progenitor a quem tenha sida atribuída a guarda da criança, deve-se permitir, por maioria de razão.

Entende-se recomendável e mesmo razoável que decisões dessa natureza constem com a devida clareza e pormenor da sentença, em nome da certeza e segurança jurídicas, considerando que muitas vezes as autoridades administrativas, como é o caso do Serviço de Migração e Estrangeiros (SME), apenas colocam empecilhos à viagem de uma criança com um dos progenitores, ou a viagem autorizada apenas por um dos progenitores, porque aquilo que se pretende – viajar com a criança sem a autorização do outro progenitor – não resulta claro do documento que lhe serve de base (no caso, uma sentença).

Destarte, entende-se ser exigência do superior interesse da criança que na sentença conste, não apenas a qual progenitores a guarda da criança foi atribuída, os termos em que se processará o direito de visita ou a forma como será cumprida a obrigação de alimentos, dentre outros aspectos que se mostrarem necessários de acordo com as especificidades do caso concreto, mas também que direitos e deveres específicos assistem a cada um dos progenitores e, em especial, ao que terá a guarda da criança, em função da própria delicadeza e implicações do poder-dever de guarda.

Neste sentido, a sentença deve mencionar o direito de o progenitor que tiver a guarda (exercício em separado) viajar com a criança para o interior ou exterior do país sem a necessidade de autorização do outro progenitor. E visando a melhor protecção da criança contra eventuais excessos do progenitor que tenha a guarda, da sentença deve também constar que a prova de que a viagem ocorreu sem a comunicação ao outro progenitor poderá implicar a alteração da decisão, se o superior interesse da criança assim o determinar.

           

  1. Conclusão

Por tudo o que foi dito, entende-se que de acordo com o direito vigente é possível que qualquer dos progenitores a quem a guarda de um filho seja atribuída viaje para o interior ou o exterior do país, sem qualquer necessidade de autorização prévia por parte do outro (progenitor), mesmo sendo os pais nacionais de um outro Estado.

Entende-se também que sempre que possível, e tendo em conta o dever de fundamentação que assiste aos juízes e a necessidade de se garantir certeza e segurança jurídicas, que a sentença seja o pormenorizada possível, detalhando quais os direitos e deveres concretos que assistem a cada um dos pais, considerando as questões que vão sendo objecto de controvérsia, como o é o caso da viagem com a criança, sem necessidade de autorização do progenitor que não tenha a guarda, em nome do superior interesse da criança e para que o trabalho das autoridades administrativas, com destaque para o SME, fique facilitado.

 

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Muito obrigado pela leitura.

Ireneu Matamba

Ireneu Matamba

Mestre em direito pela Universidade do Minho; Aluno do Doutoramento em Direito Civil na UBA; Pós-graduado em direito das sociedades comerciais; Pós-graduado em direito do trabalho e segurança social; Co-fundador do portal Matamba - Direito & Tecnologia; Ex Director Geral do Guiché Único da Empresa; Ex Director Nacional de Identificação, Registos e Notariado; Docente universitário há 16 anos; Consultor jurídico (direito comercial, direito das sociedades comerciais, direito da família e sucessões e direito dos registos e notariado).

Áreas
Direito da Família

Palavras-chave
autoridade paternal exercício em separado viajem da criança
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