- Enquadramento inicial
No dia 13 de Setembro de 2019, a República de Angola e a Santa Sé assinaram um acordo-quadro, que resultou do desejo de definir o quadro jurídico das relações entre a Igreja Católica e o Estado Angolano (lê-se no preâmbulo do acordo).
O referido acordo foi depois aprovado pelo Sr. Presidente da República, pelo Decreto Presidencial n.º 302/19, de 21 de Outubro de 2019, depois de aprovado pelo Conselho de Ministros no dia 10 de Outubro de 2019, tudo isso nos termos da Lei n.º 4/11, de 14 de Janeiro – Lei dos Tratados Internacionais, nomeadamente dos seus artigos 14.º e 5.º.
Um dos aspectos objecto de tal acordo é o relativo à família e matrimónio canónico, previsto no artigo 14.º do Decreto Presidencial n.º 302/19, de 21 de Outubro. Depois de no número 1 do mencionado artigo 14.º ter-se feito reconhecimento da importância particular do casamento canónico na edificação da família no seio da Nação, o número 2 do mesmo artigo estabeleceu o seguinte:
“São reconhecidos os efeitos civis ao matrimónio celebrado em conformidade com as leis canónicas, desde que o Assento de Casamento seja transcrito nos devidos registos do estado civil (entenda-se na conservatória do registo civil competente), em termos a definir na lei angolana.”
Na sequência do supracitado Decreto-Presidencial, no dia 11 de Outubro de 2021, o Sr. Ministro da Justiça exarou o Decreto Executivo n.º 510/21, que regulamentou os procedimentos a serem observados, visando o reconhecimento de efeitos civis ao casamento canónico-concordatário (lê-se no preambulo do referido Decreto Executivo).
Aparentemente, como depois será explanado, estavam criadas as condições legais para que os fiéis católicos, caso quisessem, não mais precisassem contrair matrimónio civil (nas conservatórias do registo civil) e depois casamento religioso, bastando a celebração do casamento católico, seguido da transcrição no registo civil, para que a sua relação gozasse plenamente da protecção que o direito positivo ou escrito reserva aos casamentos.
Essa matéria, da produção de efeitos civis dos casamentos canónicos (católicos), foi difundida a partir do dia 13 de Outubro de 2021, tanto no canal oficial do Governo da República de Angola, como noutros órgãos da comunicação social, como o Jornal de Angola.
As duas instituições criaram as condições necessárias (incluindo a formação dos intervenientes) e no dia 16 de Janeiro de 2022, foi anunciado pelo Jornal de Angola a celebração do primeiro casamento concordatário, isto é, casamento católico que produz efeitos civis.
Mas, será, mesmo, que os casamentos católicos celebrados no âmbito do tratado em causa e transcritos no registo civil, produzem algum efeito jurídico?
Entende-se que não. Abaixo a justificação.
- O casamento segundo a Constituição
O casamento tem o seu regime jurídico principal previsto na Constituição da República de Angola (CRA), como aliás não poderia deixar de ser, considerando que a CRA é a pedra basilar de todo o ordenamento jurídico.
Com efeito, a CRA consagra que todos têm o direito de livremente constituir família, nos termos da Constituição e da lei (artigo 35.º, n.º 2) e estabelece também que a “lei regula os requisitos e os efeitos do casamento e da união de facto, bem como os da sua dissolução”.
Tal significa, que a CRA mandatou a lei ordinária (se se preferir, lei infraconstitucional ou abaixo da CRA) para definir o regime jurídico do casamento (requisitos para a celebração, efeitos que o mesmo produz, e os termos para a sua dissolução).
A lei em questão, que pode balizar o casamento, apenas pode ser aprovada ou alterada pela Assembleia Nacional, porque a matéria sobre o estado e capacidade das pessoas é reserva absoluta de competência legislativa do órgão legislativo por excelência, como reza o artigo 164.º, alínea O. da CRA.
Assim, resta visitar o Código da Família, para perceber-se o que ele estabelece.
- O casamento segundo o Código da Família
De acordo com o Código da Família (CF), o casamento só é válido quando celebrado perante os órgãos do Registo Civil ou reconhecido de acordo com as suas regras (cf. artigo 27.º, sob a epígrafe validade do casamento), sendo que a intervenção do conservador do registo civil ou seu substituto legal (artigo 34.º, alínea b.), o que não se verificando implicará a inexistência do casamento, como sublimemente explicava a saudosa Professora Maria do Carmo Medina (Direito da Família, 2.ª Edição, Escolar Editora, 2013, páginas 211 e 212).
O CF estabelece ainda a necessidade de previamente à celebração do casamento ser organizado um processo preliminar de casamento, junto da conservatória do registo civil competente, que tem como objectivo comprovar a capacidade matrimonial dos nubentes (definida nos artigos 24.º a 26.º do CF).
- O Acordo-Quadro entre a República de Angola e a Santa Sé alterou o previsto no artigo 27.º do Código da Família?
Não, não e não.
Em primeiro lugar, a disciplina do casamento diz respeito ao estado das pessoas e apenas pode ser alterada por via de um tratado solene, como resulta do artigo 4.º, alínea g. da Lei n.º 4/11, de 14 de Janeiro – Lei dos Tratados Internacionais.
Tratados solenes são os que, pela natureza do seu objecto e pela importância que revestem, são da competência política e legislativa da Assembleia Nacional, ou seja, são celebrados segundo a forma tradicional, necessitando sempre de ratificação ou adesão (artigo 2.º, alínea a. da Lei n.º 4/11, de 14 de Janeiro).
Esses tratados solenes apresentam com particularidades no processo da sua aprovação, dentre outras, a necessidade de apreciação pelo Conselho de Ministros, a remessa do mesmo pelo Titular do Poder Executivo à Assembleia Nacional para Aprovação, e a aprovação pela Assembleia Nacional, por via de uma Resolução, seguida de ratificação ou adesão pelo Presidente da República, tudo isso nos termos do artigo 11.º da Lei n.º 4/11, de 14 de Janeiro).
O Acordo-Quadro em análise não é um Tratado Solene, por não reunir os requisitos acabados de mencionar, sobretudo, por não ter havido a intervenção da Assembleia Nacional, para não se alongar muito com essa fundamentação.
Entende-se que o Acordo-Quadro em questão é enquadrável no âmbito dos Acordos Executivos, que nos termos da do artigo 5.º da Lei n.º 4/11, de 14 de Janeiro, são todos os não mencionados no artigo 4. (tratados solenes), cuja entrada em vigor na ordem jurídica angolana está sujeita à aprovação do Presidente da República, depois de apreciados pelo Conselho de Ministros, o que foi o que aconteceu no caso em análise, conforme mencionado no enquadramento inicial dessa publicação.
Assim, percebe-se e facilmente pode-se afirmar que o casamento civil regulado nos termos do Código da Família continua a ser o único válido em Angola, nos termos do artigo 27.º do CF.
- Qual, então, a situação dos casamentos canónicos-concordatários, já transcritos nas conservatórias do registo civil competentes?
Os casamentos canónicos celebrados nos termos do Acordo-Quadro já mencionado e transcritos no registo civil, nos termos do Decreto Executivo n.º 510/21, de 11 de Outubro, mencionado na primeira parte da presente publicação, são juridicamente inexistentes, não produzindo, por isso, efeito jurídico algum.
O quadro normativo relativo ao dito casamento canónico-concordatário (Acordo-Quadro aprovado pelo Presidente da República e Decreto Executivo do Ministro da Justiça e dos Direitos Humanos) apenas criou a aparência de que os mesmos produzem efeitos jurídicos.
Destarte, e para que se perceba melhor, os fiéis católicos que celebraram casamento canónico e o transcreveram nas conservatórias do registo civil competentes, continuam a ser solteiros, em termos civis, podendo casar com outra ou outras pessoas civilmente.
- Pode-se invocar a figura do casamento putativo, para “salvar” esses casamentos canónicos-concordatários, já registados?
A resposta é negativa.
O casamento putativo é a figura que permite que o casamento nulo ou anulável, celebrado de boa-fé pelos nubentes, produza efeitos jurídicos, até a data em que a decisão do tribunal de declaração de nulidade ou de anulação transitar em julgado, isto é, tornar-se definitiva, porque não mais admite recurso algum (consultar o artigo 71.º do Código da Família).
No caso em análise, os casamentos não são nem nulos, nem anuláveis, pois lhes faltam um pressuposto de existência: a intervenção do funcionário do registo civil, durante a celebração (artigo 34.º, alínea b. do Código da Família).
Assim, repete-se, os fiéis católicos com casamentos canónicos-concordatários já registados, continuam a ser civilmente solteiros, não obstante constar já dos seus assentos de nascimento e Bilhetes de Identidade o averbamento do estado civil de casados.
- E os fiéis católicos, que ainda não casaram?
A recomendação é, até que sejam observados os imperativos constitucionais e legais para o efeito, que continuem a contrair matrimónio tanto junto do Estado (das conservatórias do registo civil), como junto da respectiva igreja, para que o casamento possa estar apto a produzir efeitos civis e, assim, poderem se arrogar e gozar dos efeitos do mesmo.
- Sugestões para o direito futuro
Considerando os princípios constitucionais da igualdade (artigo 23.º da Constituição), da liberdade de culto e de religião, que a Assembleia Nacional promova a alteração do Código da Família, consagrando que os casamentos religiosos podem produzir efeitos civis, sempre que celebrados nos termos do Código da Família (singularidade, capacidade matrimonial e consentimento mútuo), desde que:
- A confissão religiosa esteja regularmente constituída ou reconhecida pelo Estado angolano;
- Seja celebrado um Acordo-Quadro entre o Estado angolano e cada confissão religiosa aderente, em que se definam aspectos procedimentais concretos;
- Os interessados solicitem a transcrição do mesmo na conservatória do registo civil competente.
- Notas finais
Não obstante o esforço louvável feito pelo Estado Angolano e a Santa Sé, porque reduziria o tempo, custo e massada dos interessados, os casamentos canónicos continuam a não produzir efeitos civis em Angola, salvo os celebrados antes da entrada em vigor da Lei n.º 11/85, de 28 de Outubro e que tenham sido registados, ou venham a ser registados, nos termos do artigo 41.º do Código da Família, por não se ter observado o imposto na Constituição, no Código da Família e na Lei dos Tratados Internacionais.
A contínua divulgação e aplicação das soluções resultantes dos diplomas objecto dessa publicação não contribuíram para a certeza e segurança jurídica, pois os fiéis católicos criarão a falsa ideia de que estão casados também civilmente, quando na verdade continuam/continuarão solteiros.
Que sejam promovidas rapidamente as competentes medidas (alteração legislativa e regulamentar), para não apenas resolver-se o problema dos duplos ou triplos casamentos, mas também para todos os fiéis das demais confissões religiosas reconhecidas pelo Estado angolano.
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