Constituição de sociedades comerciais em Angola: questões decorrentes do ambiente legal

por Ireneu Matamba em 06 de Jan, 2023 Artigo
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Constituição de sociedades comerciais em Angola: questões decorrentes do ambiente legal

 

1. Introdução

A actividade comercial é sobretudo levada a cabo por meio de sociedades comerciais, que são, de maneira simples, a organização jurídica da empresa. O artigo 13.º, n.º 2, do Código Comercial não deixa dúvidas de que as sociedades comerciais são comerciantes.

As sociedades comercias apenas existem (juridicamente), depois de registadas na conservatória competente (artigos 20.º e 5.º, ambos da Lei das Sociedades Comerciais), pelo que cumpre olhar inicialmente para a constituição de sociedades e questões conexas, no âmbito do exercício proposto de analisar critica e pedagogicamente o ambiente empresarial em Angola, mais concretamente quanto aos problemas legais e práticos.

Porque há muito que se lhe diga quanto a constituição, no presente artigo cuidar-se-á apenas da análise do ambiente legal e (más) consequências práticas do mesmo.

As outras matérias serão objecto dos próximos artigos, desta série.

 

2. Ambiente legal de constituição de sociedades comerciais

Visando a segurança jurídica de todos os interessados (stakeholders), o ordenamento jurídico define um conjunto de regras que enformam a constituição de sociedade comercial.

Essas regras não constam de um único diploma, infelizmente.

Sendo compreensível o facto de as regras substantivas e adjectivas constarem de diplomas diferentes, já não se entende que regras com a mesma natureza (substantiva ou adjectiva), constem de vários diplomas legais.

Desde logo, porque o risco de ausência de harmonia entre elas é enorme e, em segundo lugar, porque será difícil aos vários interessados/operadores procederem a devida articulação sistemática das mesmas, o que num caso e noutro não concorre para a certeza e segurança jurídicas.

Abaixo são apresentados, a título exemplificativo (e não de forma exaustiva), os vários diplomas e normas ligados à constituição de sociedades e questões conexas, para que se possa perceber qual o estado actual.

Deixando de parte o princípio constitucional da livre iniciativa económica (artigo 14.º da Constituição da República de Angola), encontra-se na primeira linha o Código Comercial, concretamente os artigos 13.º e seguintes (que definem quem é comerciante e quem não pode exercer o comércio), 19.º, 20.º, 24.º, 26.º, 27.º e 28.º, sobre a firma (e regras a observar na composição de firmas).

Seguidamente ao Código Comercial está a Lei n.º 1/04, de 13 de Fevereiro - das sociedades comerciais, que é o principal diploma nessa matéria. Com efeito, contém várias normas essenciais que devem ser observadas aquando da constituição, como abaixo indicadas.

O artigo 2.º da Lei em análise, define, de forma taxativa, os tipos de sociedade, cabendo aos interessados apenas escolher qual adoptar, dentre eles; os artigos 20.º e 5.º, que determinam que o acto constitutivo das sociedades comerciais deve ser registado na conservatória do registo comercial competente e que apenas depois do registo as mesmas adquirem a sua personalidade jurídica, isto é, passam a existir para o direito; o artigo 8.º, que define a forma escrita do contrato de sociedade, bem como a regra da pluripessoalidade dos sócios (2 pessoas, no mínimo), salvo o disposto quanto as sociedades unipessoais; o artigo 9.º, que permite a constituição de sociedade entre cônjuges, além de outras regras que visam harmonizar os efeitos do regime de bens do casamento, com certas regras próprias do direito societário (conferir os números 2 e 3, do citado artigo 9.º); o artigo 10.º, que fixa o conteúdo mínimo obrigatório do contrato de sociedade, que pode ser moldado, dentro dos limites da lei, de acordo com o artigo 11.º; os artigos 12.º, 13.º, 14.º e 16.º, que fixam as regras respeitantes à firma, objecto social, sede e moeda que deve ser usada para efeitos de definição do capital social, respectivamente; o 27.º e seguintes, atinentes às entradas dos sócios.

Depois das constantes dos diplomas inicialmente citados, há que considerar as normas presentes na Lei n.º 19/12, de 11 de Junho - Lei das Sociedades Unipessoais, mormente nos seus artigos 2.º (tipologia), 7.º (constituição), 10.º e 19.º (personalidade jurídica, depois de registada), 12.º, 13.º, 14.º, 16.º, sobre a celebração e publicação do acto constitutivo, firma, sede e centro de decisão e capital social, respectivamente.

Há ainda que mencionar a Lei n.º 11/15, de 17 de Janeiro, que consagra novas e diferentes normas sobre a possibilidade de o Conservador do Registo Comercial reconhecer assinaturas (artigo 5.º), sobre o deferimento das entradas (artigo 7.º), sobre a declaração das entradas (artigo 8.º) e sobre o procedimento de constituição imediata de sociedades comerciais, constantes do capítulo V.

Nesse capítulo V encontram-se novas soluções procedimentais sobre registos online e certidão permanente, dispensa da publicação em diário da República do acto constitutivo e a sua publicação online.

Não se pode deixar de ter em consideração as normas da Lei n.º 30/11, de 13 de Setembro - Lei das Micro, Pequenas e Médias Empresas, bem como as do seu regulamento, aprovado pelo Decreto Presidencial n.º 94/21, de 19 de Abril, que impactam no processo de constituição das empresas objecto da sua tutela.

Há ainda que destacar as normas especiais ligadas às entidades que exerçam actividade reguladas por legislação especial.

Tal é o caso das normas constantes do Regime Geral das Instituições Financeiras, aprovado pela Lei n.º 14/21, de 14 de Maio, assim como outros diplomas com natureza equivalente (avisos do BNA), da Lei n.º 18/22, de 07 de Julho, que regula a actividade seguradora e resseguradora. 

Atente-se, também, para as normas que estabelecem o regime jurídico do investimento privado (nacional e estrangeiro), constantes da Lei 10/18, de 26 de Junho, alterada e republicada pela lei n.º 10/21, de 22 de Abril, destacando-se, por exemplo, a constante do artigo 35.º, n.º 2, que dispensa a apresentação do Certificado de Registo de Investimento Privado e que permite que um estrangeiro, possuidor de qualquer visto, possa constituir sociedade comercial.

Em termos de legislação adjectiva específica, há que considerar o Código de Registo Comercial e seu Regulamento, o Código do Notariado, para os casos em que por imposição legal ou vontade dos interessados, a constituição seja feita por escritura pública, as normas do Decreto 47/03, de 8 de Julho, que contém normas procedimentais sobre para a aprovação das firmas.

A realidade legal acabada de mencionar é suficiente para se perceber a dificuldade que vários operadores públicos (Técnicos do Ficheiro Central de Denominações Sociais, Notários, Conservadores, Funcionários do Guiché Único da Empresa, funcionºarios ligados às várias entidades licenciadoras) e privados (Advogados, Bancos) enfrentam e demonstram, em questões ligadas à constituição, como destacado no ponto seguinte.

 

3. Alguns dos problemas decorrentes do ambiente legal supracitado

Quais são, então, as dificuldades/problemas que se tem vivenciado, em consequência do actual ambiente legal?

Não serão obviamente apresentadas todas as dificuldades, pois o objectivo é apenas o de transmitir uma ideia geral que seja capaz de deixar clara a realidade.

a) Recusa de constituição de sociedade unipessoal por escritura, por parte de alguns notários, com a alegação de que a Lei n.º 19/12, de 11 de Junho, estabelece uma forma diferente (documento particular, com reconhecimento da assinatura).

É uma situação que demonstra um entendimento erróneo de que a forma escritura pública apenas pode ser adoptada quando a lei a impõe. Tal entendimento poderia ser evitado pela consulta do artigo 4.º, n.º 2, alínea k. do Regime Jurídico do Notariado (aprovado pelo Decreto Presidencial n.º 51/11, de 23 de Março) e artigo 89.º, alínea b. do Código do Notariado, a partir dos quais se percebe tanto a possibilidade de o notário intervir a pedido do interessado, como a de as escrituras públicas serem celebradas a pedido dos interessados.

b) Recusa de registo de sociedade comercial, por parte de alguns conservadores do registo comercial, pelo facto de na firma constar apenas uma ou 2 actividades, e não todas as existentes no objecto social.

Assim se nota que há dificuldade em perceber que o princípio da verdade da firma, aplicado a esse caso, apenas exige que o objecto constante da firma corresponda ao menos a uma das actividades a ser desenvolvidas pela sociedade, mas não exige que todo o objecto social conste da firma.

c) Recusa (errada) de registo de sociedade comercial, por parte de alguns conservadores do registo comercial, em situações em que o interessado define como objecto social a actividade de consultoria (sem qualquer acréscimo). Neste caso, é comum exigir-se ao interessado que diga qual o tipo de consultoria, para supostamente evitar um aproveitamento no sentido do exercício de consultoria jurídica, por parte de uma sociedade comercial.

Esta situação demonstra a dificuldade de alguns conservadores perceberem o que é uma actividade comercial, o que requer, também, compreender o que é o comércio, em sentido jurídico. A esse respeito sugere-se, não obstante outros, a leitura de Abreu, Jorge Manuel Coutinho de, Curso de Direito Comercial, Vol. I, 5.ª edição, páginas 14 e seguintes).

d) Recusa (errada) de licenciamento de actividade de uma sociedade que se dedicaria à prestação de serviços de medicina do trabalho, porque no objecto social constava apenas a prestação de serviço de medicina, e não de medicina do trabalho.

e) Recusa (errada) de licenciamento de actividade de ensino de uma sociedade comercial, porque o nome da escola (estabelecimento comercial) não coincide com a firma da sociedade.

Tal demonstra que não se consegue distinguir a firma (nome do comerciante) do nome de estabelecimento comercial (que serve para identificar um estabelecimento comercial e distingui-lo de outros).

f) Recusa (errada) de abertura de conta bancária de sociedade constituenda, por parte de vários bancos, que exigem a apresentação de documentos definitivos (certidão de registo comercial, por exemplo), ao arrepio do disposto no artigo 523.º da Lei das Sociedades Comerciais que, já em 2004, ordenou aos bancos a criação de condições para, em 30 dias, ser possível a abertura de contas para sociedades a constituir, para efeitos de depósito do capital social.

g) Recusa (errada) de abertura de contas bancárias de sociedades já constituídas, por falta de publicação em Diário da República, ao arrepio do disposto nos artigos 14.º e 15.º da Lei n.º 11/15, de 17 de Junho, bem como das normas regulamentares aprovadas por determinação dos artigos citados (Decreto Presidencial n.º 153/16, de 5 de Agosto, alterado pelo Decreto Presidencial n.º 60/20, de 3 de Março e Decreto Executivo do Ministro da Justiça e dos Direitos Humanos n.º 168/20, de 1 de Junho).

h) Recusa (errada) de abertura de contas bancárias de sociedades em que participam estrangeiros não residentes e titulares de qualquer visto que não o de investidor, invocando-se o disposto no Regime Jurídico dos Estrangeiros, todavia ao arrepio do disposto no artigo 35.º, n.º 2, da Lei do Investimento Privado.

Na mesma senda, alguns oficiais do Serviço de Migração e Estrangeiros em algumas províncias que não Luanda, entendem que esses cidadãos estrangeiros não podem constituir sociedades e que tal representaria uma violação das normas sobre o regime de entrada e permanência em Angola, constantes do Regime Jurídico dos Estrangeiros, pelo que  o Guiché Único da Empresa estaria a agir mal, por consituir sociedades nas condições aqui mencionadas.

i) Recusa (acertada) de admitir que pessoas que não são advogadas nem sócias actuem como procuradores, para efeitos de constituição de sociedade comercial, o que tem sido bastante contestado pelos cidadãos e por vários advogados. Lembre-se, com efeito, o disposto no artigo 20.º, n.º 1, alínea c., da Lei n.º 8/17, de 13 de Março, que legitima a actuação das instituições que têm recusado, como o Guiché Único da Empresa.

Note-se que quem reclama tal recusa invoca as normas gerais sobre procurações e mandato, previstas no Código Civil, que não estabelecem limitação igual, mas que decaem diante de norma especial e constante de Lei nova.

j) Pedido (errado) de registo de abertura de filial (que seria uma sociedade comercial, detida parcial ou totalmente por outra sociedade), tanto a pedido do utente, como por exigência da entidade licenciadora (que emite o alvará comercial, em particular), que normalmente é recusado, ao menos pela conservatória do registo comercial do Guiché Único da Empresa, por corresponder, na verdade, a abertura de novo estabelecimento comercial, numa outra zona.

Dos mencionados pedidos constam apenas o endereço e o nome do estabelecimento comercial.

Nestes casos há claramente, da parte dos requerentes e seus advogados, algumas vezes, bem como da entidade licenciadora que exige que assim seja, desconhecimento do que seja estabelecimento comercial, sociedade comercial e das normas sobre o licenciamento comercial, para as quais se remete.

4. Conclusões e sugestões

O ambiente de negócios, no tocante a abertura de empresas, em destaque por agora, deve ser o mais simples e fluido possível, de forma a ser atractivo, tanto para os empreendedores e investidores nacionais, quanto para os estrangeiros, diferentemente do actual.

A dispersão de diplomas legais tem gerado bastante confusão e dificultado, em última instância, quem investe/empreende ou pretende investir/empreender.

Destarte, algumas das soluções poderiam passar por:

a) Desde logo, enquanto soluções mais profundas não são implementadas, é de todo recomendável a formação especializada e permanente dos vários interessados, a respeito dessas matérias;

b) Que o BNA fiscalize as práticas e sistemas informáticos dos bancos comerciais, para ver a sua adequação à lei, quanto a abertura de contas bancárias, tanto para sociedades constituendas, como já constituídas.

c) Que a Inspeção Geral da Administração do Estado fiscalize mais ainda a actuação das várias entidades públicas que intervêm na constituição de sociedades comerciais, visando garantir a sua actuação em conformidade com a Lei;

d) Também poder-se-ia ponderar juntar as várias entidades que lidam com as empresas, desde logo o Guiché Único da Empresa (GUE), o Instituto de Apoio as Pequenas e Médias Empresas (INAPEM), a Agência de Investimento Privado e Promoção das Exportações (AIPEX), e atribuir órgão daí resultante competência total para tratar dessas matérias (de constituição), incluindo os licenciamentos, bem como para promover todas as mudanças necessários a melhoria do ambiente de negócios no país.

e) Em termos ideiais, seria bom que fosse aprovado um novo Código Comercial, contendo todas as normas substantivas sobre as sociedades comerciais, em especial sobre a constituição, incluindo normas hoje constantes, por exemplo, da Lei do Investimento Privado, da Lei das Micro, Pequenas e Médias empresas;

f) E aprovar, também, um novo Código de Registo Comercial, que contenha todas as normas adjectivas, que hoje se encontram dispersas.

E a si, caro leitor, o que lhe parece? Deixe a sua opinião, nos comentários abaixo.

Muito obrigado, pela leitura.

 

Ireneu Matamba

Ireneu Matamba

Mestre em direito pela Universidade do Minho; Aluno do Doutoramento em Direito Civil na UBA; Pós-graduado em direito das sociedades comerciais; Pós-graduado em direito do trabalho e segurança social; Co-fundador do portal Matamba - Direito & Tecnologia; Ex Director Geral do Guiché Único da Empresa; Ex Director Nacional de Identificação, Registos e Notariado; Docente universitário há 16 anos; Consultor jurídico (direito comercial, direito das sociedades comerciais, direito da família e sucessões e direito dos registos e notariado).

Áreas
Direito Comercial Direito Societário

Palavras-chave
sociedade comercial constituição
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Comentários (4)

  • Daniel Bento Luís
    Daniel Bento Luís Cerca de 3 anos atrás

    Uma visão holística da realidade comercial em geral e das sociedades comerciais em particular. O ambiente legal (substantivo e adjectivo) tem sido um calcanhar de Aquiles na execução e acompanhamentos das empresas e particulares. Sugere-se ao legislador maior atenção neste sentido. Bom trabalho

  • Isadora Francisca Chihuto
    Isadora Francisca Chihuto Cerca de 3 anos atrás

    Isso faz-nos perceber que os nossos órgãos ou serviços de fiscalização desses serviços precisam trabalhar mais para melhor facilitar o processo da constituição de sociedades comerciais no nosso país, ainda se verifica muita Burocracia nas nossas administrações, precisamos melhorar se quisermos atrair investidores ou incentivar o investimento local. Contudo, muito obrigada Dr. Por esta explanação tão gratificante.

  • João Luís José Baptista
    João Luís José Baptista Cerca de 3 anos atrás

    Do meu ponto de vista,é necessário que se faça uma unificação por parte do legislador,das várias normais dispersas, relativamente a constituição de empresas,para que se possa evitar os problemas decorrente do ambiente legal empresarial em Angola.

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