Direito ao Divórcio, Alçada dos Tribunais e Acesso à Justiça: quanto custa o processo de divórcio?

por Ireneu Matamba , Silvino de Castro em 03 de May, 2021 Artigo
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Direito ao Divórcio, Alçada dos Tribunais e Acesso à Justiça: quanto custa o processo de divórcio?

“A recente alteração à Lei sobre a fixação de custas judiciais e alçadas dos tribunais encareceu o processo de divórcio (e os demais processos judiciais) mas não é verdade que da sua publicação em diante o processo de divórcio passou a custar 6 160 000,00 Kz.”

 

  1. Notas iniciais

O casamento é uma união voluntária, entre um homem e uma mulher, com a finalidade de estabelecerem uma plena comunhão de vida (artigo 20.º do Código da Família). A comunhão de vida inclui a comunhão de cama, mesa e habitação(Medina, Maria do Carmo, Direito da Família, Escolar Editora, 2ª Edição, 2013, página 231).

O casamento é uma relação jurídica, isto é, uma ligação entre duas pessoas que tem relevância para o direito, ao ponto de alguém poder solicitar a intervenção do Estado em caso de violação de algum direito seu (acção de alimentos, acção de divórcio...).

Como qualquer relação jurídica, o casamento está sujeito a ter o seu termo, quer por factos naturais (a morte), quer por vontade de ambos ou de um dos cônjuges.

Quando termine pela vontade de um ou de ambos, é necessário a observância de um processo e, consequentemente, o pagamento de taxas (emolumentos registrais, custas judiciais, conforme o caso).

A esse respeito, foi recentemente aprovada a Lei n.º 5-A/21 de 5 de Março, que alterou a Lei sobre a fixação de custas judiciais e alçadas dos tribunais e, na sequência, foi publicitada via redes sociais a Circular Interna n.º 001/3SSF/2021 da 3.ª Secção da Sala de Família do Tribunal Provincial de Luanda, de 26 de Abril de 2021, contendo uma referência ao novo valor da alçada (AKZ 6 160 001,00) e os valores dos preparos (inicial – 49 500,00 Kz.; subsequente -  66 000,00 Kz.; julgamento – 49 500,00 Kz.; decisão – 49 500,00 Kz.).

Da publicação da sobredita circular resultaram vários comentários, publicações e republicações a respeito, destacando-se os que atestavam que o (processo de) divórcio ficou muito caro, pois com a entrada em vigor da nova Lei passou a “custar” Kz. 6 160 001,00 (note-se que a Lei em análise fala em Kz. 6 160 000,00, no seu artigo 2.º).

A pergunta que se procurará responder ao longos dos parágrafos seguintes é a seguinte: Os Requerentes nos processos de divórcio estão obrigados a pagar o valor de Kz. 6 160 000,00? Ou, se se preferir, o processo de divórcio passou a custar Kz. 6 160 000,00?

Procurar-se-á analisar os efeitos da entrada em vigor da mencionada Lei no exercício do direito ao divórcio.

 

  1. Modalidades de extinção do casamento

O divórcio é, a par da morte, uma das duas formas de extinção do casamento (artigo 74.º do Código da Família). O Código da Família admite duas modalidades de divórcio: por mútuo acordo e litigioso.

No caso do divórcio por mútuo acordo, ambos os cônjuges concordam que os princípios em que se baseava a sua união deterioraram-se de forma completa e irremediável e o casamento perdeu o sentido para ambos, filhos e sociedade, pelo que decidem pôr termo a vida conjugal (artigos 78.º e  84.º Código da Família).

Já no divórcio litigioso, apenas um dos cônjuges entende que se verifica uma causa grave ou duradoura que deteriorou de forma completa e irremediável o casamento, pelo que esse não mas faz sentido para ambos, filhos, ou para a sociedade (artigos 78.º e 97.º do Código da Família).

Nessa hipótese (divórcio litigioso), o cônjuge que tiver tal percepção irá à tribunal solicitar o fim do casamento, devendo provar a existência de tal causa grave ou duradoura perturbadora do casamento. Caso o tribunal concorde com a posição deste cônjuge-requerente, decretará o divórcio, independentemente da vontade do outro cônjuge, por se tratar de um direito potestativo, isto é, que produz efeitos na esfera do outro sem necessidade do seu assentimento ou concordância.

 

  1. Processo de divórcio por mútuo acordo junto da conservatória do registo civil

O processo de divórcio por mútuo acordo pode correr junto de uma conservatória do registo civil (divórcio administrativo) ou junto de um tribunal (divórcio judicial), conforme estabelecido no artigo 86.º do Código da Família.

O processo de divórcio por mútuo acordo é administrativo (isto é, corre junto da conservatória do registo civil competente) caso não haja filhos menores de idade ou, havendo, exista já uma decisão do tribunal relativamente ao exercício da autoridade paternal (guarda da criança, prestação de alimentos à criança...), como resulta do disposto no artigo 87.º do Código da Família.

O divórcio por mútuo acordo junto da conservatória do registo civil pressupõe o pagamento dos emolumentos fixados, estabelecidos por meio do Decreto Presidencial n.º 301/19, de 16 de Outubro. Com efeito, o valor do processo de divórcio administrativo é de Kz. 36 500,00, acrescido do valor de Kz. 3 928,00 pela passagem da certidão do referido processo, o que perfaz um valor total de Kz. 40 328,00.

O processo judicial de divórcio por mútuo acordo será analisado na secção seguinte, pois segue as mesmas regras em termos de taxas aplicáveis do processo (judicial) de divórcio litigioso.

 

  1. Divórcio litigioso e divórcio por mútuo acordo pela via judicial

O processo de divórcio por mútuo acordo acontece em tribunal nos casos em que existam filhos menores de idade e não haja uma decisão judicial quanto ao exercício da autoridade paternal.

Por sua vez, o processo de divórcio litigioso é sempre judicial, ou seja, é da competência de um tribunal (artigo 107.º do Código da Família).

Num caso e noutro, é necessário pagar-se as custas judiciais (que são, em termos mais simples, as taxas ou os valores a pagar para que alguém possa beneficiar do serviço do Tribunal).

O valor a pagar a título de custas judicias (taxas judiciais) é de Kz. 165 000,00, sendo Kz. 49 500,00 como Preparo inicial, Kz. 66 000,00 a título de preparo subsequente e Kz. 49 500,00 como preparo do julgamento ou da decisão, conforme o caso.

Ao valor referido acresce-se o valor devido ao advogado (honorários advocatícios).

A ser assim como referido, em que momento é chamado o difundido valor de  6 160 000,00 Kz? Para que serve o conceito de alçada do tribunal?

 

  1. O valor da alçada e a sua influência no processo de divórcio

Doutrinalmente, a alçada dum tribunal é definida como sendo o limite do valor das causas dentro do qual o tribunal julga sem admissibilidade de recurso ordinário, sendo, por isso, um elemento que influi, ainda que de modo indirecto, na forma do processo aplicável à acção (VARELA, Antunes, BEZERRA, J. Miguel, Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2004, p. 58.).

A esse respeito, o n.º 1 do artigo 462.º do Código do Processo Civil dispõe que “se o valor da causa exceder a alçada da Relação, empregar-se-á o processo ordinário; se a não exceder, empregar-se-á o processo sumário excepto se não ultrapassar metade do valor fixado para a alçada do tribunal de comarca e acção se destinar ao cumprimento de obrigações pecuniárias, à indemnização por dano e a entrega de coisas móveis, porque nestes casos o processo adequado é o sumaríssimo”.

Por sua vez, no que aos recursos diz respeito, o diploma acima referenciado estabelece um princípio geral segundo o qual, “apenas as decisões proferidas em causas de valor superior a alçada do tribunal de que se recorre admitem recurso ordinário, salvo se as mesmas tiverem por fundamento a violação das regras de competência internacional, em razão da matéria ou da hierarquia ou a ofensa de caso julgado, situações em que o recurso é sempre admissível independentemente do valor da acção” (artigo 678.º do Código de Processo Civil).

A alçada, é, assim, a esfera de actuação de um tribunal, é o limite da competência de um tribunal.

A Lei n.º 5-A/21, de 5 de Março fixou o valor da alçada do tribunal da relação (tribunal de recurso por excelência) em Kz. 6 160 000,00 e a dos tribunais de Comarca (tribunal de primeira instância) em AKZ 3 080 000,00.

Assim sendo, quando o valor da acção/causa, esteja acima dos supra indicados, os mencionados tribunais não possuem competência para julgar tais acções, sendo a competência, nestes casos, do tribunal imediatamente superior, no caso do Tribunal da Relação, por exemplo, será competente o Tribunal Supremo.

Com efeito, o valor da acção deve, assim, ser entendido como sendo o benefício económico que o Autor (a pessoa que dá entrada do pedido em tribunal) retira da acção, ou seja, é o benefício imediato do pedido do Autor. Assim, a título de exemplo, se determinada pessoa desencadeia uma acção para a cobrança de uma dívida no valor de Kz. 2 000 000,00 este é o valor da acção, porquanto é o benefício directo e imediato a que o Autor terá direito em caso de ganho de causa.

Destarte, é através deste valor que se determina os custos do processo, ou seja, é o valor da causa que permitirá, à luz da tabela anexa à Lei 5-A/21 de 5 de Março, fixar que custos incorrerão as partes, Autor e Réu, com o desencadeamento da acção, sendo os mesmos, em regra, pagos em 3 prestações correspondentes a cada fase do processo (preparo inicial, preparo subsequente e preparo para decisão/julgamento, com os valores acima referidos de Kz. 49 500,00, Kz. 66 000,00 e Kz. 49 000,00, repectivamente), podendo, nalguns casos, ser pago em duas prestações, como por exemplo nas situações em que na audiência preparatória o juiz entenda que é possível conhecer do mérito da causa num despacho saneador sentença, ordenando, então, o pagamento simultâneo do preparo subsequente e para decisão.

Portanto, do acabado de referir é claro que da lei em análise não resulta que doravante o processo do divórcio passou a “custar” Kz. 6 160 000,00, pois o valor da alçada não é o valor a pagar.

Uma outra pergunta que se poderia levantar é a seguinte: e se a pessoa não dispuser de meios para pagar os referidos valores, quer a título de emolumentos do processo administrativo de divórcio por mútuo acordo, quer a título de preparos (inicial, subsequente ou da decisão/julgamento) nos processos judiciais de divórcio por mútuo acordo e litigioso?

 

  1. Incapacidade económica e acesso à justiça – a questão do patrocínio judiciário

Neste caso, pode socorrer-se do patrocínio judiciário, que consiste na disponibilização de um advogado pelo Estado (tribunal) e na isenção de pagamento das custas judiciais. Para que se beneficie desta prerrogativa é necessário obter-se um certificado de pobreza, para efeitos de patrocínio judiciário, junto da administração comunal/distrital/municipal e requerer. O requerimento pode ser feito junto da Ordem dos Advogados de Angola, ou directamente no tribunal.

Essa solução de patrocínio judiciário visa justamente garantir o direito de acesso à justiça e aos tribunais, para a tutela (protecção) jurídica dos seus legítimos interesses e direitos.

 

  1. Referências finais

Reitera-se os seguintes aspectos a respeito do tema em análise:

  1. O processo de divórcio de divórcio por mútuo acordo e que seja tratado junto de uma conservatória do registo civil tem o valor (emolumento) de 40 328,00 Kz, em função do disposto no Decreto Presidencial 301/19, de 16 de Outubro.
  2. Já o processo de divórcio junto do tribunal está sujeito ao pagamento de custas judiciais, designadas preparos, num total de Kz. 165 000,00 (Kz. 49 500,00 como Preparo inicial, Kz. 66 000,00 a título de preparo subsequente e Kz. 49 500,00 como preparo do julgamento ou da decisão, conforme o caso), em virtude do disposto na Lei n.º 5-A/21 de 5 de Março (que alterou a Lei sobre a fixação de custas judiciais e alçadas dos tribunais).
  3. Com efeito, não é verdade que o processo de divórcio passou a custar Kz. 6 160 000,00, pois este valor é o da alçada e serve apenas como um dos critérios para determinar a competência de um tribunal para julgar certos processo, a forma do processo e a admissibilidade de recurso ordinário, como foi referido acima.
  4. Nos casos em que alguém não esteja em condições de pagar as taxas em vigor, pode socorrer-se do instituto do patrocínio judiciário, que é o meio que garante o acesso à justiça e ao direito por parte dos cidadãos que não disponham de recursos económicos suficientes para suportar as despesas de um processo de divórcio, quer administrativo, quer judicial.

E a si caro leitor, o que lhe parece? Partilhe connosco as suas ideias nos comentários abaixo.

 

Muito obrigado pela leitura.

 

Ireneu Matamba

Ireneu Matamba

Mestre em direito pela Universidade do Minho; Aluno do Doutoramento em Direito Civil na UBA; Pós-graduado em direito das sociedades comerciais; Pós-graduado em direito do trabalho e segurança social; Co-fundador do portal Matamba - Direito & Tecnologia; Ex Director Geral do Guiché Único da Empresa; Ex Director Nacional de Identificação, Registos e Notariado; Docente universitário há 16 anos; Consultor jurídico (direito comercial, direito das sociedades comerciais, direito da família e sucessões e direito dos registos e notariado).
Silvino de Castro

Silvino de Castro

Docente de Direito da Família e de Teoria Geral do Direito Civil da FDUAN, Mestrando em Direito Civil pela FDUAN; Advogado e Sócio do Escritório de Advogados Costa & Castro Advogados - http://costacastroadvogados.com

Áreas
Direito da Família Direito dos Registos e Notariado Processo Civil

Palavras-chave
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Comentários (6)

  • Isabel Sambo Samuel Francisco
    Isabel Sambo Samuel Francisco Cerca de 4 anos atrás

    Caríssimos leitores, expressamos por essa via os nossos agradecimentos. Em menos de 24 horas registamos 233 visualizações. Aguardamos pelos vossos comentários/reflexões.

  • Henriques Ngolome
    Henriques Ngolome Cerca de 4 anos atrás

    Estão de parabéns os autores, por terem esclarecido de forma simples e objectiva as inquietações em torno da presente reflêxão.

  • Ireneu Matamba
    Ireneu Matamba Cerca de 4 anos atrás

    Ilustre Dr. Henrique Ngolome, muito obrigado pela sua leitura. Esperamos que continue a ler os nossos artigos. Visite o portal. Até breve.

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