Introdução
O advento das transações no mercado regulamentado constitui uma alternativa viável para o processo de diversificação e formalização da economia, atracção de investimento externo e a construção de um ambiente de investimento descentralizado, permitindo não só um eficaz aproveitamento das poupanças dos indivíduos e das empresas – e direcioná-los a instrumentos com maior solidez, segurança na tutela da confiança dos stakeholders, aumento da liquidez do sistema financeiro nacional por via do aumento da poupança interna –, mas também funcionar como meio alternativo de financiamento de empresas - através de obrigações, acções e demais instrumentos derivativos - ou do Estado por via da emissão de títulos da dívida pública.
I. No Mercado de Valores Mobiliários, por se propiciar um encontro entre os investidores/aforradores e emitentes/captadores de fundos[1], é de relevância capital a existência de uma estrutura de intermediação financeira, cujo fim se destine a auxiliar o processo de tomada de decisões e, consequente, execução destas decisões no tocante a operacionalização das pretensões de investimentos das empresas.
A actividade de intermediação financeira encontra-se, essencialmente, ligada a própria natureza, quer ao nível do exercício bem como da organização, da prestação de serviços relativos à titularidade mobiliária.
II. O mercado angolano contempla, actualmente, a existência de dois principais, mas não exclusivos, players que actuam no sector da intermediação financeira: as Sociedades Distribuidoras de Valores Mobiliários (SDVM) e as Sociedades Corretoras de Valores Mobiliários (SCVM).
As SDVM e as SCVM, nos termos do n.º 4 do artigo 7.º da Lei 14/21 de 14 de Maio - Lei das Instituições Financeiras – integram-se na categoria das chamadas Instituições Financeiras não Bancárias (IFNB), devendo, para tal, desenvolverem as suas operações no Mercado de Capitais e nos demais mecanismos de Investimento correlatos. Este preceito vem, portanto, traçar a delimitação de um princípio tendente à exclusividade do exercício das actividades financeiras desta natureza consignada a estes dois entes.
Ademais, o Código dos Valores Mobiliários, aprovado pela Lei 22/15 de 31 de Agosto, pela sua articulação cronológica, ao dispor no seu artigo 225.º, n.º 2, que apenas são admitidos como membros do mercado regulamentado, além dos outros agentes de intermediação cujo objecto permita a sua admissão, as sociedades distribuidoras e as sociedades corretoras de valores mobiliários traçou uma consagração prévia do princípio da exclusividade do exercício das actividades de intermediação financeira.
A materialização deste princípio tem se efectivado de modo gradual[2], tendo tido como ponto de partida a Instrução N.º 05/CMC/03-23 da Comissão do Mercado de Capitais, que fixava a transferência integral das actividades de intermediação financeira dos bancos para as Sociedades Distribuidoras e Corretoras de Valores Mobiliários até 31 de Dezembro de 2023. Porém, a complexidade do processo de transferência veio exigir que o CMC, por via da Instrução N.º 10/CMC/12-23 de 15 de Dezembro, opta-se por manter ainda a operacionalização de alguns serviços de intermediação financeira sob égide também das instituições bancárias, como é o caso, por exemplo, da gestão dos Organismos de Investimento Colectivo (OIC).
Recentemente a CMC fez sair a Instrução N.º 03/CMC/06-25, prorrogando para 2030 as condições de excepcionalidade que haviam sido estabelecidas pela Instrução N.º 10/CMC/12-23, além de trazer algumas alterações significativas no âmbito de reduzir as actividades relacionados ao Mercado de Capitais que os bancos podiam prestar neste período de transição.
Essa mobilidade normativa lato sensu, por parte do regulador, traduz-se num claro reconhecimento da necessidade de se assegurar, de modo ponderado e comedido, o processo de transição para o novo paradigma do mercado de capitais que se pretende imprimir na realidade angolana, com vista a evitar a criação de medidas paliativas que venham afectar a eficiência e a normal dinâmica deste mercado.
Entretanto, este exercício simultâneo de várias actividades de investimento pelos bancos pode se consubstanciar num motor impulsionador de conflito de interesses entre estas diversas actividades e os interesses dos clientes - além de que pode constituir um atropelo ao princípio da concorrência, pelo simples facto dos bancos possuírem informações privilegiadas quanto a liquidez e capacidade de investimento dos seus clientes, permitindo que possam possuir um processo de oferta otimizado em função destes dados.
III. A questão da distinção entre as SDVM e as SCVM tem sido em termos práticos, comummente, associada à efectivação das Initials Publics Offers (IPO) - Oferta Pública de Venda (OPV) – no quadro do programa de privatização dos activos financeiros do Estado angolano (PROPRIV), em que até o momento apontam-se as operações de abertura de capital das seguintes instituições:
1 - Banco Caixa Geral Angola – com a venda de 25% da acções do Estado angolano que eram detidas pela Sonangol;
2 - Banco Angolano de Investimentos – com a venda de 8,5% da acções anteriormente detidas pela Sonangol e 1,5% das acções detidas pela Endiama;
3 - Bolsa de Divida e Valores de Angola, Sociedade Gestora dos Mercados Regulamentados – com a venda de 30% de acções;
Estando prospectado para os próximos dias, ainda no quadro do PROPRIV, a capitalização em bolsa das participações accionistas do Estado angolano afectas ao Banco de Fomento de Angola, da Unitel e do Standard Bank.
IV. Paulo Câmara[3] entende que a determinação do perímetro de serviços e actividades de investimento é importante, atendendo ao regime jurídico que lhe está associado em termos de exigências de autorização e deveres de conduta.
Por razões de certeza jurídica, trata-se de uma função que não é abandonada ao intérprete, mas sim traçada, em termos claros e precisos, por lei, com vista a protecção da parte mais vulnerável[4] no negócio que lia a entidade intermediária e o investidor.
Ora, o sector de actuação das SDVM e SCVM tem, a este despeito, a sua delimitação fixada pelo objecto social que se encontra determinado, injuntivamente, pelos artigos 2.º e 3.º do Decreto Legislativo Presidencial n.º 5/13 de 9 de Outubro, decreto que estabelece o Regime Jurídico das Sociedades Correctoras e Distribuidoras de Valores Mobiliários e, subsidiariamente, pelo artigo 1.º, n.º 2 da Lei 1/04 de 13 de Fevereiro, Lei das Sociedades Comerciais, encerrando-se num princípio de especialidade determinado pelo objecto societário.
Todavia, relevando a sistematização de acordo critérios doutrinários, os elementos constantes nas alíneas destes artigos reconduzem-se, em termos estruturais, nos seguintes tópicos:
a) Originação – consubstancia-se no conjunto de operações realizadas no mercado primário, nomeadamente emissão e oferta à subscrição de novos valores mobiliários, seja no mercado de dívida, acções, ou de outros derivados.
b) Estruturação – traduz-se na execução dos actos prévios à montagem completa de uma operação, desde a assessoria financeira até à determinação dos parâmetros financeiros da operação e organização do processo de colocação dos títulos, tanto no mercado obrigacionista como no mercado acionista.
c) Custódia – funda-se no conjunto de actos que visam a guarda dos títulos, a administração dos registos de transacções, a simplificação das operações em mercados regulamentados e o processamento dos eventos societários relacionados com os títulos.
d) Corretagem – constituem as actividades atinentes à recepção, transmissão e execução de ordens, sejam elas de compra ou venda no mercado primário e secundário, por conta de outrem em mercados bolsista e mercados organizados.
Dentre estas, incorporam-se também: a gestão de carteiras discricionárias e de Organismos de Investimento Colectivo, consultoria de investimentos, incluindo a elaboração de estudos, análise financeira e outras recomendações genéricas, a negociação para carteira própria bem como os serviços de câmbio indispensáveis à realização das operações acima descritas[5].
Assim, as SDVM e as SCVM distinguem-se pelos seguintes aspectos:
- Às SDVM é reservado, exclusivamente, a operacionalização de actividades relacionadas à originação e estruturação, configurando-se nos actos prévios à colocação de entidades oferentes/emitentes no mercado bolsista, tendo em conta a natureza dos valores mobiliários (acções ou obrigações) que pretendam disponibilizar.
A par destes elementos, as sociedades distribuidoras podem ainda, conforme dispõe a al. h) do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto Legislativo Presidencial 5/13 de 09 de Outubro, conceder crédito, incluindo o empréstimo de valores mobiliários, para a realização de operações em que intervém a entidade concedente de crédito, bem como a negociação para carteira própria.
- Já às SCVM é consignado, com certo grau de individualidade, o exercício de actividades de consultoria de investimentos, incluindo a elaboração de estudos, análise financeira e outras recomendações genéricas, assim como a gestão de carteiras discricionárias e de Organismos de Investimento Colectivo.
V. Todavia, estes dois entes partilham também semelhanças operacionais quanto alguns aspectos, sendo: a prestação de serviços nas seguintes áreas: custódia, quando se refira ao armazenamento de valores mobiliários e ao registro das transações dos investidores. A custódia consistiui o ponto de partida para actuação de qualquer interessado no mercado de capitais, através da respectiva conta, que deve ser domiciliada em uma das duas instituições; corretagem – quando se pretenda analisar a efectivação quer no tocante à emissão de ordens de compra, assim como de venda de títulos, seja no mercado primário, assim como no mercado secundário.
Conclusão
A distinção entre as SDVM e as SCVM no ordenamento jurídico angolano revela-se precisa, não apenas pela necessidade regulatória, mas como imperativo estrutural para a consolidação de um mercado de capitais robusto, seguro e funcional.
Todavia, a efectivação das disposições normativas relativas a esta distinção, cuja amplitude prática se encerra na prestação de serviços de intermediação financeira estipulados pela Lei das Instituições Financeiras, pelo Código dos Valores Mobiliários e pelo Decreto Legislativo Presidencial 5/13 de 09 de Outubro - deverá exigir uma articulação eficiente, mutatis mutandis, com o conteúdo dos dispostos nos instrutivos 05/CMC/03-23, 10/CMC/12-23 e 03/CMC/06-25 exarados pela Comissão de Mercado de Capitais com vista um adequado ajuste à política regulatória de transição e a consequente materialização do princípio da exclusividade da prestação de actividades de intermediação financeiras.
Assim, mais do que uma mera separação funcional, a existência e consolidação das SDVM e SCVM representa um avanço significativo no iter para a maturação do Mercado de Valores Mobiliários angolano, promovendo não só a diversificação e formalização da economia, mas também a democratização do acesso ao investimento.
Citações
[1] CÂMARA, Paulo; Manual de Direito dos Valores Mobiliários; Editora Almedina; Coimbra; 2009; p. 353
[2] SOKI, John, CMC Recua e Bancos Ficam no Mercado de Capitais até 2030; artigo de opinião publicado na Revista o Telegrama, disponível em: https://www.otelegrama.ao/opiniao/cmc-recua-e-bancos-ficam-no-mercado-de-capitais-ate-2030/; consultado em 20/06/2025
[3] Manual de Direito dos Valores Mobiliários; Editora Almedina; Coimbra; 2009; p. 359
[4] Na esteira de Menezes Cordeiro, Vulnerabilidades e Direito Civil; artigo publicado na Revista de Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, edição 2021, p. 22; “A tutela da parte fraca ou do sujeito vulnerável preenche, na atualidade, numerosas intervenções, para além dos campos tradicionais da protecção (…) no exercício da autonomia privada”. Disponível em https://repositorio.ulisboa.pt/handle/10451/61886; consultado em 21/06/2025
[5] Cfr. artigos 2.º e 3.º do Decreto Legislativo Presidencial n.º 5/13 de 9 de Outubro
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