Parecer jurídico sobre a possibilidade de uma instituição de ensino privado substituir o contrato de trabalho do docente pelo contrato de prestação de serviço

por Onilda Patrícia Camoço Quingongo em 11 de May, 2025 Parecer Jurídico
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Parecer jurídico sobre a possibilidade de uma instituição de ensino privado substituir o contrato de trabalho do docente pelo contrato de prestação de serviço

I. SUMÁRIO

Natureza jurídica da relação estabelecida entre os docentes e as instituições de ensino privado; o contrato de trabalho; o contrato de prestação de serviço; distinção entre o contrato de trabalho e o contrato de prestação de serviço; pode a instituição de ensino privado substituir o contrato de trabalho do docente pelo contrato de prestação de serviço?

II. RELATÓRIO

No dia 7 de Abril de 2025, na reunião realizada na Instituição de Ensino Privado onde lecciono a disciplina de Introdução ao Direito desde o ano de 2015, isto é, há 10 anos, tomei conhecimento que os contratos de trabalho de todos os docentes (e outros funcionários da limpeza, vigilantes e manutenção), designados “não efectivos”, seriam substituídos por contratos de prestação de serviços, com efeito imediato. A entidade empregadora justificou a mudança com o facto de ter entrado em vigor a Lei n.º 12/23, de 27 de Dezembro, Lei Geral do Trabalho, que consagra que os contratos de trabalho devem, em regra, ser celebrados por tempo indeterminado. Justificou ainda que foram aconselhados a assim procederam pela Associação Nacional do Ensino Particular - ANEP.

A questão referente a natureza jurídica da relação estabelecida entre os docentes e Instituições de ensino privado, em particular, tem me preocupado há algum tempo, porquanto exerço, além da docência, a advocacia (forense) há sete anos (nove anos se considerar os dois anos de estágio), sendo a área do Direito do Trabalho uma das quais actuo. Ao longo da minha carreira tenho trabalhado em vários processos de docentes contra Instituições de Ensino Privado e apesar de constatar várias violações aos meus direitos enquanto docente (e de todos os outros docentes e demais trabalhadores da instituição) praticados reiteradamente pela entidade empregadora, ao longo de todos os anos de trabalho (porquanto nunca recebemos os salários referentes às épocas de férias, os subsídios de férias e de natal), a situação nunca me preocupou tanto como agora, pois apesar de tudo, a relação era boa e estava amparada pela LGT.

No entanto, considerando a situação actual, visando contribuir para que não esteja a cometer, mesmo que de forma involuntária, violação à LGT e legislação conexa (sobre a Segurança Social, Impostos, entre outras) e ao Regime Jurídico das Instituições Privadas e Público-Privadas de Educação Pré-Escolar e de Ensino Primário e Secundário, entendi elaborar este parecer.

Entendo que para a questão em apreço são aplicáveis, nomeadamente, a Lei n.º 12/23, de 27 de Dezembro, Lei Geral do Trabalho, doravante designada LGT; os artigos 32.º, n. º1 e 47.º do Decreto Presidencial n.º 37/23, de 9 de Fevereiro, que aprova o Regime Jurídico das Instituições Privadas e Público-Privadas de Educação Pré-Escolar e de Ensino Primário e Secundário, doravante denominado RJIPE; os artigos 1154.º e 1155.º do Código Civil, doravante denominado CC.

III. FUNDAMENTAÇÃO

  1. Natureza jurídica da relação estabelecida entre os docentes e as instituições de ensino privado.

Não existe, salvo melhor entendimento, no ordenamento jurídico angolano, uma lei que regula de modo especial a relação jurídica que se estabelece entre as Instituições de Ensino Privado e os seus respectivos docentes. Entretanto, o RJIPE consagra, no seu art. 32.º n.º1, que “a Direcção de cada Instituição de Ensino deve possuir um arquivo com todos os contratos de trabalho dos docentes, e outros, nos termos da LGT” e, no art. 47.º, que “os Docentes das Instituições de ensino exercem uma função de interesse público, e devem ter os direitos e deveres inerentes ao exercício da função no país, para além das normas fixadas na LGT e legislação aplicável”. Assim, o RJIPE relegou a regulação da relação jurídica laboral existente entre os docentes e as instituições de ensino privado para a LGT.

Ora, desde Março de 2024, em Angola vigora a Lei n.º 12/23, de 27 de Dezembro, LGT, que revogou a Lei n.º 7/15, de 15 de Junho, anterior LGT. No seu art. 1.º, a LGT refere que se aplica a todos os contratos de trabalho celebrados entre pessoas singulares e empresas públicas, privadas, (…). A relação estabelecida no âmbito da LGT denomina-se relação jurídica laboral e constitui-se por meio da celebração do contrato de trabalho.

  1. O contrato de trabalho

 O Contrato de Trabalho é definido pelo art. 3.º al. c), como acordo pelo qual uma pessoa se obriga a colocar a sua capacidade manual ou intelectual à disposição de uma pessoa colectiva ou singular, dentro do âmbito da organização e sob a direcção e autoridade deste, tendo como contrapartida uma remuneração. O contrato de trabalho pode assumir a forma escrita ou verbal (art. 12.º) e pode ser por tempo determinado ou indeterminado (art. 14.º). Entretanto, a regra é o contrato de trabalho por tempo indeterminado. O art. 15.º refere as situações em que o contrato pode ser celebrado por tempo determinado (e em nenhuma delas se enquadra o contrato do docente tampouco dos outros funcionários da instituição de ensino privado), que deve obrigatoriamente assumir a forma escrita. Caso o contrato por tempo determinado não assuma a forma escrita, para todos os efeitos, será considerado por tempo indeterminado (art. 12.º, n.º4).

A Lei n.º 7/15, de 15 de Junho, LGT anterior, permitia a celebração de contratos por tempo determinado e a sua renovação por períodos iguais ou diferentes até ao limite máximo de cinco (5) anos nas grandes empresas e dez (10) anos nas médias, pequenas e micro empresas. Findo o prazo, o contrato era considerado por tempo indeterminado (art. 17.º). A Nova LGT, tem disposição idêntica nos art.ºs 16.º e 17.º. Entretanto, com a entrada em vigor da Nova LGT, os contratos celebrados por tempo determinado, na vigência da LGT anterior, que não se enquadrem nas situações previstas no art. 15.º, consideram-se celebrados por tempo indeterminado, findo o prazo, caso seja renovado (art. 319.º).

Com a celebração do contrato de trabalho, o docente (bem como todos os outros trabalhadores) adquire vários direitos, nomeadamente, estabilidade do emprego (podendo ser despedido apenas nas situações previstas na Lei), receber pontualmente o seu salário, subsídios, gratificações de férias e de natal, ser inscrito no INSS, gozar da licença de maternidade (mulheres) e paternidade (homens), só para citar alguns (art. 83.º). Mesmo no contrato de trabalho por tempo determinado o docente (e todos os outros trabalhadores) tem o direito de gozar férias, receber a remuneração referente as férias bem como a gratificação das férias e de natal (conforme prevê o art. 205.º da nova LGT e previa a LGT anterior no seu art. 133.º).

  1. O contrato de prestação de serviço

O contrato de prestação de serviço é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual com ou sem retribuição (art. 1154.º do CC).  São modalidades desse tipo de contrato o mandato, o depósito e a empreitada (art. 1155.º do CC).

Os exemplos mais frequentes de utilização de um Contrato de Prestação de Serviço são para: trabalho autónomo de profissionais liberais (ex. serviços de contabilidade e advocacia); trabalho eventual; terceirização de serviços (ex.: segurança, manutenção de equipamentos, limpeza, etc.).

Esse tipo de contrato obedece ao princípio da autonomia da vontade, assume a forma que as partes quiserem, sendo apenas exigível a vontade das partes e que não seja contrário à Lei.

  1. Distinção entre o contrato de trabalho e o contrato de prestação de serviço

Como traços distintivos principais entre o contrato de trabalho e o contrato de prestação de serviço, podem apontar-se os seguintes: no contrato de trabalho está em causa a prestação da actividade do trabalhador – prestação de meios; ao passo que, a prestação de serviço tem por objecto o resultado do trabalho e não o trabalho em si – prestação de resultados; o contrato de trabalho é necessariamente oneroso, enquanto o contrato de prestação de serviço pode ser oneroso ou gratuito; no contrato de trabalho, a actividade do trabalhador é prestada sob a autoridade e direcção do empregador, existindo, assim a subordinação jurídica. Pelo contrário, no contrato de prestação de serviços não há subordinação jurídica, o prestador de serviços exerce a sua actividade com autonomia. Apontam-se, ainda, outros aspectos que não são determinantes, mas que podem ser preponderantes, nomeadamente: no contrato de trabalho, a actividade do trabalhador é exercida na Empresa, junto do empregador ou em local indicado por este; existe um horário de trabalho fixo; os bens ou utensílios utilizados são fornecidos pelo empregador.

Ora, a actividade do docente (e outros trabalhadores da instituição) é realizada em local pertencente ao empregador ou por ele determinado; os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à instituição de ensino; observa-se hora de início e de termo da prestação determinadas pela instituição;  é paga, com determinada periodicidade, uma quantia certa, como contrapartida da actividade prestada; o docente tem de exercer a actividade por si e não por intermédio de outras pessoas, pelo carácter ituitu personane da actividade; nalguns casos desempenha-se funções de direcção ou chefia na estrutura orgânica da empresa. O docente, em particular, desempenha a actividade docente com a obrigação de empregar todos os meios à sua disposição para transmitir os conhecimentos de forma pedagógica, avaliar e classificar o nível de aproveitamento dos alunos sem, no entanto, estar obrigado a garantir determinado resultado (prestação de meios); a actividade do docente tem sempre como contraprestação o pagamento do salário (obrigatoriedade de retribuição) e por fim, a actividade docente é exercida sob subordinação jurídica, detendo o empregador os poderes de direcção, regulamentação e disciplina e os exerce em relação ao docente.

Logo, não restam dúvidas, e sem desprimor do princípio da autonomia privada, previsto no artigo 405.º do C.C, independente da denominação atribuída pelas partes ao contrato, que o contrato celebrado entre os docentes e as instituições privadas, público-privadas de educação pré-escolar, de ensino primário e secundário configura um verdadeiro contrato de trabalho, com todas as implicações que dele resultam (direitos e deveres consagrados na LGT e legislação conexa - Fiscal, Segurança Social e outras).

Chegado aqui resta responder a seguinte questão:

  1. Pode a instituição de ensino privado substituir o contrato de trabalho do docente pelo contrato de prestação de serviço?

O contrato de trabalho só pode modificar-se nas situações previstas no art. 107.º e seguintes da LGT ou com o acordo das partes. A LGT confere ao trabalhador o direito à estabilidade do emprego, sendo as razões susceptiveis de extinguir a relação jurídica-laboral somente as previstas no art. 274.º, nomeadamente, a caducidade, a revogação e a resolução.

Ao substituir o contrato de trabalho do docente, bem como de todos os outros trabalhadores da instituição, pelo contrato de prestação de serviço, o empregar/instituição está automaticamente a extinguir o vínculo laboral existente até a data presente, está a praticar o despedimento colectivo (ilegal) que apenas poderá fazê-lo nas situações previstas na Lei.

As instituições de ensino que não conformem a sua actuação às disposições imperativas da Lei Geral do Trabalho e legislação conexa incorrem na prática de contra-ordenações, ficando sujeitas ao pagamento de multas, nos termos do artigo 318.º da LGT, sem desprimor do dever de indemnizar o trabalhador por danos patrimoniais e não patrimoniais nos casos previstos na lei.

  1. CONCLUSÃO

Depois de tudo o que foi esgrimido acima, resta concluir o seguinte:

  1. Os contratos celebrados entre os docentes e as Instituições Privadas e Público-Privadas de Educação Pré-Escolar e de Ensino Primário e Secundário, independente da denominação atribuída, são contratos de trabalho, regulados pela LGT;
  2. Os docentes (e todos os outros trabalhadores) gozam de todos os direitos previstos pela LGT e legislação conexa, por isso lhes devem ser pagos o salário correspondente ao período de férias, a gratificação de férias e de natal;
  3. As Instituições Privadas e Público-Privadas de Educação Pré-Escolar e de Ensino Primário e Secundário não podem substituir os contratos de trabalho pré-existentes por contratos de prestação de serviço;
  4. A substituição dos contratos de trabalho pelo contrato de prestação de serviços configura a prática de contra-ordenação, ficando as Instituições sujeitas ao pagamento de multas, nos termos do art.º 318.º da LGT, sem desprimor do dever de compensar e/ou indemnizar os trabalhadores (docentes e outros) pela cessação do contrato de trabalho, por danos patrimoniais e não patrimoniais nos casos previstos na lei;
  5. A instituição, a partir de agora, em obediência à Lei n.º 12/23, de 27 de Dezembro, Lei Geral do Trabalho, deve celebrar contratos de trabalho por tempo  indeterminado com os docentes e todos os outros funcionários da instituição, cujos contratos não se enquadrem nas excepções do art. 15.º referente aos contratos por tempo determinado;
  6. Em obediência à LGT, deve ser pago a todos os trabalhadores (docentes e não docentes) a remuneração nos períodos de férias (equivalente a 100% do salário base), as gratificações anuais, nomeadamente, de férias (equivalente a 50% do salário base) e as gratificações de natal (equivalente a 50% do salário base);
  7. Considerando que a actividade docente não se encerra na sala de aulas, mas abrange outras actividades correlacionadas, designadamente a  correcção de provas, a elaboração de mini-pautas, o preenchimento de cadernetas dos estudantes, os seminários de capacitação, as reuniões com a direcção da instituição escolar e encarregados de educação, a instituição/empregador, usando do poder de direcção, pode organizar a actividade laboral no sentido de manter os docentes ocupados com as tarefas supra citadas e o restante período de 22 dias úteis, considerar-se como férias, com a consequente remuneração, que deve ser paga até 15 dias antes do respectivo gozo.

Salvo melhor opinião, é o que me parece.

Onilda Patrícia Camoço Quingongo

Onilda Patrícia Camoço Quingongo

Licenciada em Direito/Área Jurídico Civil pela Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto. Pós-Graduada em Agregação Pedagógica pela Universidade Agostinho Neto. Advogada nas áreas de Direito da Família, Laboral, Civil, Penal e Comercial. Professora de Introdução ao Direito, no Segundo Ciclo do Ensino Secundário.

Áreas
Direito do Trabalho

Palavras-chave
Contrato de trabalho Contrato de prestação de serviços Alteração do tipo de contrato
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