Inovação e tecnologia no Direito: caminhos para a transformação digital da justiça em Angola

por Ireneu Matamba em 18 de May, 2025 Comunicação em evento
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Inovação e tecnologia no Direito: caminhos para a transformação digital da justiça em Angola

No passado dia 7 de Maio de 2025 foi realizado o 1º Fórum Nacional de Desenvolvimento e Empreendedorismo Jurídico, organizado pela FD IURIS e enquadrado nas comemorações dos 50 anos da Independência Nacional. Abaixo a minha comunicação no referido evento.

Prezados colegas, entusiastas da inovação e do futuro do Direito,

É uma honra dirigir-me a este distinto fórum para debater um tema crucial e de impacto transformador para a nossa profissão e para a sociedade como um todo: "Inovação e Tecnologia no Direito: Caminhos para a Transformação Digital da Justiça".

Agradeço o convite e parabenizo à organização deste certame, FD IURIS e ao seu patrono, o Dr. Domingos Feca.

As novas tecnologias são a última grande revolução, com papel e importância similares aos da revolução verde/agrícola e da revolução  industrial.

O surgimento do computador e o desenvolvimento da internet abriram um sem número de possibilidades para as pessoas, famílias e instituições privadas e publicas, o que obviamente requer sejam definidas regras para bitolarem a actuação em sede da computação ou com o uso ou recurso à computação.

Vivemos uma era de disrupção, onde a tecnologia redefine paradigmas em todas as esferas. O Direito, tradicionalmente visto como um campo conservador, não está imune a essa revolução. Pelo contrário, encontra-se no epicentro de uma profunda transformação digital que promete tornar a justiça mais ágil, acessível, eficiente e transparente.

Esta comunicação visa explorar os caminhos dessa transformação, identificando as principais inovações tecnológicas, os desafios a serem superados e as vastas oportunidades que se abrem para o empreendedorismo jurídico.

  1. O Cenário Actual: A Justiça em Transição Digital

A digitalização do sistema de justiça já é uma realidade em muitos aspectos. A implementação de processos electrónicos, plataformas online para gestão de casos e a realização de audiências virtuais são exemplos palpáveis dessa evolução, em algumas partes do mundo (Estónia, Letónia, Dinamarca, Portugal, China, Singapura, Quénia, Gana, África do Sul).

Em Angola, sinto que ainda estamos bastante distantes da evolução acima referida, por diversos factores. Com efeito, os tribunais ainda não estão digitalizados (não há processos electrónicos, não há a possibilidade da prática de actos processuais pela via digital). Ao nível dos serviços prestados pelo Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos há uma realidade esquisita. Se por um lado temos o Guiché Único da Empresa, onde é possível tramitar online processos de constituição e de alteração de sociedades comerciais (www.gue.gov.ao), nos restantes serviços é necessária a presença do interessado, podendo distinguir-se, nesses outros serviços (cartórios notariais, conservatórias e serviços de identificação civil, Centro de Resolução Extrajudicial de Litígios), serviços digitalizados e serviços onde ainda tudo é feito de maneira tradicional (recurso a livros em papel...).

As bases legais estão lançadas, pelo menos desde 2011, destacando-se os seguintes diplomas:

  • Lei das comunicações eletrónicas e dos serviços da sociedade e de informação (Lei n.º 23/11, de 20 de Junho);
  • Regulamento das Tecnologias e dos Serviços da Sociedade de Informação (Decreto Presidencial n.º 202/11, de 22 de Julho);
  • Lei da Protecção de Dados Pessoais (Lei n.º 22/11, de 17 de Junho);
  • Lei de Protecção das Redes e Sistemas Informáticos (Lei n.º 7/17, de 16 de Fevereiro);
  • Convenção da União Africana sobre Cibersegurança e Proteção de Dados Pessoais (Resolução n.º 33/19, de 9 de Julho);
  • Código Penal.

Podendo, embora, questionar-se sobre se são necessários, ou não, mais diplomas, ou, em relação aos existentes, se consagram ou não melhores soluções, se existem lacunas, a verdade é que não é pelo quadro legal que o necessário desenvolvimento do sector da justiça, rumo a digitalização, não é ainda uma realidade.

Ao nível do empreendedorismo jurídico, vão surgindo algumas iniciativas, algumas legaltechs/lawtechs, que vão disponibilizando softwares de gestão de escritórios de advogados e de pesquisa jurídica, como o GestJus Advogados e o GestJus Pesquisa.

A transformação digital vai muito além da criação de leis e regulamentos, bem como da simples digitalização de processos. Ela implica uma mudança cultural, a adopção de novas ferramentas e a reconfiguração da forma como os serviços jurídicos são pensados e entregues.

  1. Tecnologias Disruptivas e seu Impacto no Direito

Diversas tecnologias emergentes estão moldando o futuro do Direito e da Justiça pelo mundo:

  • Inteligência Artificial (IA) e Machine Learning: ferramentas de IA já são capazes de analisar grandes volumes de dados jurídicos (jurimetria), identificar padrões em decisões judiciais, auxiliar na elaboração de peças processuais, realizar triagem de casos e até mesmo prever possíveis resultados judiciais. A IA contribui para a automação de tarefas repetitivas, optimizando o tempo dos profissionais do Direito para actividades mais estratégicas e complexas.
  • Big Data e Analytics: a capacidade de recolher, processar e analisar grandes volumes de dados transforma a tomada de decisão no âmbito jurídico. A jurimetria, por exemplo, utiliza dados estatísticos para fundamentar estratégias processuais, identificar gargalos no sistema de justiça e promover uma gestão mais eficiente dos tribunais.
  • Blockchain: embora ainda em estágios iniciais de adopção no sector jurídico, o blockchain oferece potencial para garantir a autenticidade e a imutabilidade de documentos, contratos inteligentes (smart contracts) e registos (v.g.,predial, comercial, automóvel), aumentando a segurança jurídica e reduzindo fraudes.
  • Computação em Nuvem (Cloud Computing): facilita o acesso remoto a dados e sistemas, promove a colaboração entre equipes e oferece maior escalabilidade e segurança para o armazenamento de informações jurídicas. O profissionais podem trabalhar a partir de qualquer lugar, o que pode significar o aumento da produtividade (e do trabalho colaborativo).
  • Plataformas de Resolução de Disputas Online (Online Dispute Resolution - ODR): ganham cada vez mais espaço como alternativas ágeis e menos custosas para a solução de conflitos, especialmente em casos de menor complexidade, desafogando o sistema judicial tradicional.
  • Legaltechs e Lawtechs: o surgimento e crescimento de startups focadas em soluções tecnológicas para o mercado jurídico impulsionam a inovação, oferecendo ferramentas para gestão de escritórios, automação de documentos, pesquisa jurídica avançada, entre outras.
  1. Caminhos para a Transformação Digital da Justiça:

A jornada para uma justiça verdadeiramente digital e eficiente em Angola envolve diversos passos e a colaboração de múltiplos actores:

  • Investimento em Infraestrutura Tecnológica: é fundamental garantir que tribunais, escritórios de advogados e demais instituições do sistema de justiça possuam a infraestrutura tecnológica adequada. E tal tem custos. O investimento poderia ser feito faseadamente e, quiçá, com tarefas partilhadas entre o Estado e o Sector Privado.

O Estado, além do investimento próprio para o sector público (datacenters, um para os tribunais, e outro para a administração pública em geral, comunicações...), cuidaria também de garantir um datacenter, ao menos, para o sector privado, pois tal impulsionaria o surgimento de legaltechs, evitando-se, assim, o constante recurso a serviços do género (hosting) no exterior.

Note-se que já há algum investimento em curso, como o feito relativamente ao AngoSat -2, no datacenter do INFOSI, apenas para falar de iniciativas públicas com carácter central.

  • Capacitação e Desenvolvimento de Novas Habilidades: os profissionais do Direito precisam adaptar-se a essa nova realidade, desenvolvendo competências digitais e compreendendo o potencial e as limitações das novas tecnologias. A formação jurídica deve incorporar esses temas, tanto ao nível da licenciatura, como dos cursos pós-graduados.
  • Foco na Experiência do Usuário (Cidadão e Profissional do Direito): as soluções tecnológicas devem ser desenvolvidas com foco na usabilidade e na real necessidade dos seus usuários, simplificando o acesso à justiça e optimizando o trabalho dos operadores do Direito.
  • Simplificação e Desburocratização de Procedimentos: a tecnologia deve ser uma aliada na eliminação de gargalos burocráticos e na simplificação dos trâmites processuais. Entendo que antes mesmo da tecnologia, devem ser revistos uma série de procedimentos, que nada aportam aos processos. A introdução de tecnologia com procedimentos desenvolvidos e pensados de acordo com a realidade e pensamentos dos séc. XIX e XX, representará apenas a transferência da burocracia para os computadores e será, portanto, contraproducente.
  • Interoperabilidade de Sistemas: a capacidade dos diferentes sistemas utilizados pelos órgãos do judiciário, serviços do Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos e por escritórios de advogados de "conversarem" entre si é crucial para a fluidez da informação e a eficiência do sistema como um todo. A interoperabilidade permite evitar a duplicação da informação e a redução do espaço para armazenamento dos dados. Por exemplo, a informação ao cuidado e disposição dos Serviços de Identificação Civil e Criminal, não precisa estar também armazenada nos tribunais, bastando o acesso aos mesmos em tempo real.
  • Segurança de Dados e Privacidade: a protecção de dados sensíveis e a garantia da privacidade são preocupações centrais na era digital. A conformidade com a Lei da Protecção de Dados é imperativa.
  • Regulamentação e Ética: é necessário um debate contínuo sobre os aspectos éticos da utilização de tecnologias como a Inteligência Artificial no Direito, bem como o desenvolvimento de uma regulamentação que acompanhe a velocidade das inovações, garantindo a necessária segurança jurídica sem, no entanto, emperrar o progresso.
  1. Oportunidades para o Empreendedorismo Jurídico:

A transformação digital abre um vasto campo para o empreendedorismo no sector jurídico, nomeadamente:

  • Desenvolvimento de Soluções Tecnológicas (Legaltechs/Lawtechs): há uma demanda crescente por softwares de gestão, plataformas de automação, ferramentas de jurimetria, soluções de ODR, entre outros. E no caso de Angola, por estarmos ainda numa fase embrionária, nessas matérias, as oportunidades são inúmeras.
  • Consultoria em Transformação Digital para os Tribunais, Serviços Públicos, Escritórios e Departamentos Jurídicos: profissionais com conhecimento em tecnologia e Direito podem auxiliar na implementação de novas ferramentas e na adaptação de processos em Tribunais, Serviços Públicos, como Cartórios Notariais, Conservatórias, Serviços de Identificação Civil e Criminal, Centro de Resolução Extrajudicial de Litígios, Escritórios de Advogados, Departamentos ou Direcções Jurídicas de Instituições Públicas e Privadas. Assim, para os juristas, sobretudo, além das tradicionais profissões (magistratura, advocacia e consultoria jurídica, notariado, registos, docência), abrevem-se novas e infinitas oportunidades.
  • Novos Modelos de Prestação de Serviços Jurídicos: a tecnologia permite a criação de escritórios virtuais, plataformas de serviços jurídicos online e modelos de negócios mais flexíveis e acessíveis.
  • Especialização em Direito Digital: o avanço tecnológico gera novas questões jurídicas relacionadas com à proteçção de dados, crimes cibernéticos, regulação da IA, contratos inteligentes, ODR, demandando profissionais altamente especializados.
  • Produção de Conteúdo e Educação: a necessidade de capacitação contínua abre oportunidades para a criação de cursos, treinamentos e materiais educativos sobre tecnologia e Direito.
  1. Desafios a Serem Superados:

Apesar do enorme potencial, a transformação digital da justiça enfrenta desafios significativos:

  • Resistência à Mudança: a cultura organizacional e a resistência à adopção de novas práticas podem ser obstáculos.
  • Desigualdade Digital: é crucial garantir que a tecnologia não aprofunde as desigualdades existentes, assegurando o acesso à justiça digital para todos os cidadãos. Assim, e considerando a nossa realidade, a digitalização não pode descurar de soluções alternativas, para zonas com menor acesso à internet, electricidade e, mesmo, para pessoas sem qualquer ou com menor literacia digital.
  • Custos de Implementação: o investimento inicial em tecnologia e capacitação pode ser um desafio, especialmente para pequenos escritórios e órgãos públicos com orçamentos limitados. Mas é o único caminho, sob pena de “ficarmos para trás. Assim, com uma estratégia nacional, estabelecendo com precisão metas, objectivos, metodologia e um cronograma de implementação faseada, seguramente será possível.
  • Segurança Cibernética: a crescente digitalização aumenta a exposição a riscos de ataques cibernéticos e vazamento de dados. Além da legislação, há todo um cuidade que se deve ter, sendo, por isso, preferível, soluções públicas como um datacentar central, com todos os recursos de segurança possíveis ou então o uso de soluções empresariais devidamente sedimentadas no mercado (google, Microsoft, AWS, apenas para falar das principais), embora isso possa significar, para o Estado, alguma perda de soberania dos dados.
  • Questões Éticas: quem desenvolve os algoritmos e como? Além de todas as vantagens, o uso da tecnologia pode ser enviusada durante a criação de algoritmos, que poderão condicionar, por exemplo, a distribuição de processos nos tribunais. Por outro lado e apenas para dar mais um exemplo, o uso de IA em decisões judiciais levanta questões sobre responsabilidade, transparência e o risco de vieses algorítmicos.
  • Qualificação Profissional: a transformação digital do sector da justiça, como um todo, exige que os vários profissionais desse sector (magistrados, oficiais de justiça, advogados, árbitros e mediadores, consultores em transformação digital, desenvolvedores de softwares...) tenham novas habilidades digitais, acima do comum uso do computador para a escrita de documentos. E a perspectiva de integração regional, ao nível da SADC (sigla em inglês para Comunidade de Desenvolvimento da África Austral) pode representar a perda de oportunidades para os profissionais angolanos não ligados ao sector público. Destarte, a lacuna de habilidades digitais entre os operadores do Direito precisa ser urgentemente atacada.

Conclusão: Construindo o Futuro da Justiça, Juntos.

A transformação digital da justiça não é uma opção, mas uma necessidade imperativa para que o Direito cumpra o seu papel fundamental numa sociedade cada vez mais conectada, dinâmica e justa. Os caminhos para essa transformação passam pela adopção inteligente de tecnologias inovadoras, pelo desenvolvimento de novas competências, pela superação de desafios culturais e estruturais e, fundamentalmente, pelo espírito empreendedor que busca soluções criativas e eficientes.

Este Fórum Nacional de Desenvolvimento e Empreendedorismo Jurídico é o ambiente ideal para aprofundarmos este debate, compartilharmos experiências e, juntos, construirmos os pilares de uma justiça mais moderna, acessível e eficaz para todos os angolanos. A tecnologia é a ferramenta; a inovação, o método; e o nosso compromisso com a justiça, a força motriz dessa transformação.

Reitero os meus agradecimentos pela oportunidade e parabéns à FD IURIS e ao seu patrono, o Dr. Domingos Feca.

Muito obrigado.

OBS: o texto acima contém trechos de um artigo sobre direito e tecnologia que está a ser escrito em co-autoria com as minhas colegas, Jocelina de Sousa e Helary Rodrigues, da equipa Matamba - Direito & Tecnologia, às quais agradeço penhoradamente. Agradeço também às minhas colegas, Isabel Sambo e Augusta Odigie, pelo apoio na revisão. Por fim, agradeço ao Gemini, pelas importantes dicas.

Ireneu Matamba

Ireneu Matamba

Mestre em direito pela Universidade do Minho; Aluno do Doutoramento em Direito Civil na UBA; Pós-graduado em direito das sociedades comerciais; Pós-graduado em direito do trabalho e segurança social; Co-fundador do portal Matamba - Direito & Tecnologia; Ex Director Geral do Guiché Único da Empresa; Ex Director Nacional de Identificação, Registos e Notariado; Docente universitário há 16 anos; Consultor jurídico (direito comercial, direito das sociedades comerciais, direito da família e sucessões e direito dos registos e notariado).

Áreas
Direito Informático

Palavras-chave
Inovação transoformação tecnologia justiça angola
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